Sexta-feira, Outubro 31, 2025
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A Saúde do Presidente

Acabou a espera. Marcelo já comentou a Saúde no país. Se ele acha que o Presidente da República podia ter feito ou tentado mais, ao longos destes anos, era outro comentário que lhe teria pedido.

Isto não é, naturalmente, sobre a saúde do Presidente da República, que deve estar óptima, ou não tivesse tomado, em 1989, a vacina das vacinas. Falo, pois, do mergulho no Tejo para as autárquicas daquele ano. Foi corajoso, mas só ganhou uma hepatite. Ou todas, incluindo algumas que ainda não existiam e foram ali criadas para a ocasião. O eleitorado, sempre ingrato, havia de dar a vitória a um enxuto Jorge Sampaio, ainda hoje não se sabe se foi por achar que Marcelo não chegaria ao fim do mandato e já naquele tempo a estabilidade política era um desígnio nacional e local. Certo é que sobreviveu, mas não são de excluir sequelas, sendo que algumas das mais pronunciadas já se registavam antes do intrépido mergulho, coisa que para a ciência continua a ser um mistério.

Isto é hoje, então, sobre o que pensa o Chefe de Estado da Saúde em Portugal. Ontem – quinta-feira – desabafou com a pátria no final de uma conferência no ISCTE. Andava para falar nisto há muito, já tinha prometido várias vezes, foi ontem. Não esteve mal, mas mais para comentário no jornal de domingo à noite. Ao Presidente da República, apesar das suas limitações políticas, já se pede mais ou já se exige, no mínimo, que a crítica não apareça em forma de análise ao alcance de qualquer um. Como digo, não esteve mal, mas limitou-se a um conjunto de banalidades evidentes para qualquer pessoa que acompanhe minimamente o que se passa no país. E fá-lo no fim do mandato, já sem o peso daqueles avisos à navegação dramáticos que os presidentes ainda vão podendo fazer.

Não é o Presidente da República que define as políticas de Saúde, mas não deixa de ser um embaraço que, ao cabo destes dois mandatos de Marcelo Rebelo de Sousa, é talvez a área que acaba em pior estado. No estaleiro, mesmo. É verdade que não foi Primeiro-ministro, nem Ministro da Saúde, mas é o Presidente da República e por isso não deixa – ou não devia deixar – de ser um embaraço. A deterioração do serviço público, nestes últimos anos, é uma evidência. Ao mesmo tempo, a oferta privada tem crescido exponencialmente. Uma boa notícia, mas convinha que este crescimento não fosse feito à custa do serviço público. Ou seja, convinha que se somassem cuidados de saúde e oferta, não que se transferissem ou eliminassem. De outro modo, a desejável oferta privada está a canibalizar a pública e perde a virtuosidade.

Temos então aqui algo que devia tirar o sono a um Presidente da República – que, no caso do actual, já se diz que é pouco -, porque a sua função é mesmo cumprir a Constituição e garantir que ela é cumprida. Ora, o investimento privado é bom, assim como a oferta social, mas não poderá ser nunca a única resposta, porque temos de garantir também cuidados de saúde onde eles não são rentáveis ou onde são menos apetecíveis para a geração de riqueza, um objectivo que sofre sempre de muita ansiedade e oxida com facilidade. A verdade é que essa é uma garantia que a Constituição dá aos cidadãos e portanto os presidentes têm de vigiar governos e intervir se necessário. Assistimos hoje a cuidados de saúde variados (públicos e privados) de enorme qualidade nos grandes centros urbanos, mas entramos noutro país quando vamos para o interior, onde, mesmo nas cidades, os serviços são escassos.

Dou um exemplo. Há dias escreveram-me com o relato do que se passa na região do Médio Tejo. Há três hospitais, Torres Novas, Tomar e Abrantes. Entre eles foram divididas as especialidades. Não é um método convencional – para determinada especialidade pode não ser num determinado piso ou corredor, pode ser noutra cidade -, mas consegue-se, desta forma, dar resposta a uma área geográfica maior.

O problema é que a Unidade Local de Saúde pretende fechar a maternidade em Abrantes, que terá sido renovada há pouco tempo. Ou seja, fica-se sem maternidade de Santarém a Castelo Branco. Outro problema, obstetrícia/ginecologia e neonatologia são em Abrantes, mas pediatria é em Torres Novas. E todos precisam de pediatras, segundo o relato que me foi feito.

Isto é matéria de que se deve ocupar um Presidente da República, porque em muitos casos começam a falhar as garantias. Cada vez se nasce mais em ambulâncias e isso é uma falha que o Chefe de Estado não pode aceitar, muito menos que a excepção passe a ser regra, como parece ser já a nossa realidade. Não tem o poder executivo, não define as políticas, mas jurou cumprir e fazer cumprir a Constituição, que não pode ser apenas invocada para perseguir a obscenidade de alguns cartazes de propaganda política. Se o Presidente entender que não pode fazer nada, pelo menos não comente a situação como mero cronista, pois ter um presidente a dizer que isto está de pantanas ainda é pior do que isto estar só de pantanas.

Neste discurso, ontem, Marcelo dizia que as políticas não podiam estar sempre a mudar, de cada vez que chega um governo novo. E também apelou a um acordo nacional ou de regime, mas alargado. Concordo com tudo, mas a quantos governos deu este Presidente da República posse? Eu não sei contar até tantos, porque não sou bom a matemática. E quando é que exigiu um acordo? São muitos anos em Belém. Lá do palácio não se via o icebergue, em forma de mudanças de políticas e de falta de consenso? Noutras matérias, como na orçamental, o Presidente fez exigências ou impôs regras. Sobre a Saúde, será que o Presidente da República nos pode dizer o que fez nas conversas com os partidos, sobretudo durante todas aquelas crises políticas, algumas com origem também no seu próprio palácio? Promoveu o tal consenso e o tal acordo?

É que tinha sido muito importante. Porque falta mesmo. Os desafios, nesta área, são enormes, porque as transformações, nos últimos anos, foram tremendas. Mas a nossa já diagnosticada intolerância a planos fez com que avançássemos, como sempre, sem estratégia. E assim continuamos, entretidos com questões ideológicas e as demagogias mais variadas que este tema sempre atrai.

O Presidente, pelos vistos, concorda com esta análise. Será que não podia ter feito ou tentado mais? É pedir-lhe um comentário também sobre isto.

[Crónica publicada originalmente na newsletter Agora a Sério.]

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