Terça-feira, Novembro 25, 2025
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Um luso-saudita na Casa Branca

O talentoso atleta fará o que bem entende, naquilo que considera melhor para ele. Só não se diga que Ronaldo é um símbolo de Portugal. É um símbolo dele próprio e representa-se a si mesmo.

Acho que o caso tem uma importância, no máximo, relativa. Mas por cá é uma grande notícia, o tema do dia, com directos de Washington, aguardamos a qualquer momento coisas incríveis. Cristiano Ronaldo esteve na Casa Branca com Donald Trump, mais o príncipe herdeiro da Arábia Saudita. Foi uma festa.

Para mim, só se estragou uma casa. Branca.

Respeito, naturalmente, as decisões de Ronaldo. Faz o que quiser da sua vida e ninguém pode ou deve interferir. A única diferença é que, por ser uma figura pública – muito pública -, vamos sabendo o que ele faz ou o que deixa de fazer e isso pode ser objecto de uma opinião. É normal. A isto chama-se sociedade. E Ronaldo não se pode queixar da exposição porque é ela que lhe dá a fama e o dinheiro, de que tanto gosta. Podia ter optado, como tantos atletas fazem – uma grande maioria -, pela discrição. Prefere dar nas vistas e está no seu direito, insisto.

Nisto tudo só há, então, um problema. É quando falam de Ronaldo como embaixador do país – qual dos países devia ser a primeira pergunta, mas nem vamos começar já com provocações. E também quando se fala de Ronaldo como um símbolo. Qual símbolo, qual embaixador!? Ronaldo é o Ronaldo. É ele, não é um povo, nem uma cultura, nem uma identidade. É um atleta que foi muito competente, figurando destacadamente na história entre os maiores de sempre. Mas é ele e as suas escolhas, não representa mais nada, nem mais ninguém.

Não é de agora que digo isto, só para que não me acusem de dor de corno saudita. Estava o atleta no auge da carreira e sempre recusei que aquele portento futebolístico fosse partilhado entre nós todos. Pela minha parte, sou um zero à esquerda no futebol. Fiz um passe incrível, uma única vez, há talvez 30 anos. Passe na linha lateral, a bola sai do campo em arco, volta a entrar na área adversária aos pés do meu companheiro de equipa, que pouco mais conseguiu fazer porque toda a comunidade educativa – como agora se diz – ficou de queixo caído. Não só pelo passe, mas sobretudo por ter sido eu a executá-lo. Eu era sempre o último a ser escolhido para qualquer equipa e via a depressão estampada no rosto dos meus amigos quando, por simples infortúnio de terem acabado as alternativas, tinham mesmo de ficar comigo. Invariavelmente, os professores de Educação Física, perante aquela situação embaraçosa, não conseguiam esconder o semblante de compaixão, só nunca percebi se por mim ou se pela equipa que acabara de perder o jogo antes de começar.

Ora, anos mais tarde, quando Cristiano Ronaldo fazia aquelas jogadas de outro mundo, nunca consegui ver ali nem Portugal nem os portugueses, até porque isso teria de me incluir e tal não era cientificamente possível. O que eu estava a ver era Cristiano Ronaldo. Ele. Grande jogador. Podia ser português, francês, argentino ou saudita, como agora se tornou. Era igual, porque nunca jogou com o passaporte.

Temos mesmo muito esta mania de ver os portugueses que se destacam lá fora como algo transformador nas nossas vidas. Foi assim com Durão Barroso, por exemplo. Independentemente do alívio que se sentiu então, um país não pode aceitar que o seu primeiro-ministro deixe o Governo e o país numa situação de instabilidade só para agarrar um alto cargo na Europa, mesmo que seja dos mais altos. No entanto, uma enorme maioria derreteu-se com o orgulho nacional de ter um português em Bruxelas e não era por se ter perdido e saído do comboio na paragem errada. A nossa vida ia mudar. Não sei o que tinham em mente. Talvez aquela ideia de que, sendo o presidente da Comissão Europeia português, tínhamos lá um contacto, que podia arranjar coisas. Isto, sim, é muito português.

Com efeito, sempre foi irrelevante. O secretário-geral das Nações Unidas é António Guterres, não é um português, nem isso tem de nos orgulhar. Quem me está a ler sabe de certeza, porque são leitores informados, mas pergunte-se na rua qual era a nacionalidade do Kofi Annan. A vida do Gana mudou quando foram bafejados pelo prestígio de ter um ganês à frente das Nações Unidas? Não. Ninguém sabia. O mundo não queria saber, porque não é relevante. Pode ser um bocadinho. Assim uma coisinha. Pronto.

Quando a Maria João Pires deslumbra o Japão com a música do seu piano, foi a Maria João Pires, que calha ser portuguesa e ainda bem. Não foi Portugal que lá foi tocar piano, temos de nos deixar destas tretas pegadas, destas colagens ao sucesso dos outros como se de feitos colectivos se tratassem, porque não tratam.

E, por isso, o Ronaldo não representa nada a não ser ele próprio, o que já é bastante, até tem um aeroporto com o seu nome e uma estátua. Nem sei como é que a Madeira ainda não passou a ser Ronalda. Enfim.

Nesta visita do Cristiano à Casa Branca na mala do príncipe herdeiro da Arábia Saudita, há quem concorde e quem não consiga compreender. Para mim, muito sinceramente, é-me indiferente – a visita do próprio Mohammad bin Salman é muito mais relevante -, só gostava que não fosse Portugal a estar ali. Está ali o Ronaldo. Não está Portugal. Nem Ronaldo representa Portugal. Só há um português em solo norte-americano que representa Portugal, é o embaixador e a representação, mesmo essa, é puramente diplomática.

Creio que estou a propor um bom acordo. Ronaldo faz o que quer e o que bem entende, mas não é um símbolo, nem representa um povo. O luso-saudita só se representa a ele próprio. Portugal não é só mais um negócio do atleta, que tem hotéis, fábricas de porcelanas, grupos de media e agora um pequeno país na Europa. Não. Não vai dar.

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