Sábado, Setembro 20, 2025
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Um concerto inesquecível

Foram para um concerto, para o meio da multidão, mas ninguém espera, quando compra o bilhete, acabar como ponto alto do espectáculo, ficando na história da banda como um dos 'greatest hits'.

A história já todos conhecem. Enfim, nesta altura do ano, em que há muita gente sem saber que dia é hoje, talvez seja melhor uma sinopse. Um concerto dos Coldplay, em Boston, tornou mundialmente famosos um marido e uma mulher graças à particularidade de o marido não ser daquela mulher e a mulher não ser daquele marido. Os legítimos estavam em casa. Isto já bastava para ser uma grande desgraça, mas acresce que trabalhavam juntos, um era o CEO, a outra era dos recursos humanos.

Longe vai o tempo em que os amantes se escondiam e viviam em segredo, estes adúlteros foram a um concerto dos Coldplay e ali estavam, apaixonados. O grupo, para azar destes infiéis, abrilhanta as suas actuações com uma coisa horrível a que se chama kiss cam. A foleirada consiste em apanhar na plateia casais que, vendo-se no ecrã gigante, devem beijar-se. Apareceram então estes dois e a suas vidas mudaram para sempre.

Não se beijaram, claro, ela esconde a cara e vira-se de costas, ele agacha-se e desaparece do plano. Entretanto, o vocalista, com a perspicácia de uma anémona, assegura-se de que aqueles dois nunca mais são alguém. “Ou estão a ter um caso ou são tímidos”, diz Chris Martin para milhares de pessoas ali presentes, que entretanto já são muitos milhões ali ausentes. Sempre encontrei críticas aos Coldplay – não me posso pronunciar, não faço ideia -, mas sei agora, com toda a certeza, que o maior defeito deles é a guardar segredos. O Chris não deve ter um único amigo.

Sem surpresa, o vídeo fatal foi parar àquela internet onde cibernautas empedernidos de maldade surgiram muito mais astutos do que o cantor e não tiveram dúvidas: Não era timidez. Claro que não. Em geral, a timidez dá para corar e não para fugir como se alguém tivesse lançado uma granada. Tinham sido os dois apanhados, aparecendo no ecrã gigante de um concerto dos Coldplay. Isto é o pesadelo de qualquer amante. Há pessoas que não enveredam por relações extraconjugais só graças a este receio. É que a traição é uma barreira por si só, mas, tal como no furto – é o povo que diz, eu nem concordo -, o verdadeiro drama está em ser-se apanhado. E de que forma se é apanhado, porque podemos ser apanhados a comer um combinado 8 ao balcão do Galeto, por um amigo ou colega, ou podemos ser apanhados no ecrã gigante de um concerto dos Coldplay e acabar na internet, para o mundo inteiro.

Agora me lembro que isto era apenas uma sinopse.

Vem tudo isto então a propósito do quê? Da privacidade, exactamente. Ainda há dias aqui a discutíamos. Eu defendo que ela será a próxima grande luta, depois daquela que se travou, nas últimas décadas, pela liberdade – que também tem de ser diariamente garantida, como sabemos e com cada vez mais bons exemplos disso.

Estas duas pessoas – é verdade que não são propriamente exemplares, porque enganar a família é a mácula das máculas – têm a cara e o caso em todo o mundo. No mundo inteiro. Estão na internet, mas também nos noticiários. São anedota. São piada. São meme. Pois eu sei, foram para um concerto, para o meio de uma multidão, mas ninguém espera, quando compra o bilhete, acabar como ponto alto do espectáculo, ficando também na história da banda como um dos greatest hits. Aposto que este acontecimento já está na Wikipédia dos Coldplay. Vou confirmar neste momento. Na verdade, ainda não está. Felizmente, não apostei.

Mas não são apenas estas duas pessoas. São também os seus futuros ex, que não têm culpa nenhuma – são vítimas, aliás -, e agora também estão nas notícias e por essa internet fora, pelas razões que sabemos. Não é por terem descoberto uma vacina. Isto já é chato falar-se no café. Imagine-se no mundo. Ter o planeta a rir – europeus, asiáticos, americanos, católicos, budistas, muçulmanos – e a comentar um dos assuntos mais íntimos de qualquer casal ou família. A vida privada de algumas pessoas converteu-se em novela global. Em poucas horas.

Entretanto, a entidade patronal já afastou os dois, com um comunicado em que diz que aquele comportamento não se coaduna com os valores da empresa. Pois é, a ideia é vestir a camisola, não é despir. Talvez tenham exagerado no team building. Não sabemos se estes dois não se abraçaram a primeira vez num passeio de rafting, quando a responsável dos recursos humanos ia voando para fora do barco pneumático e foi agarrada pelo corajoso CEO. Não sabemos. Sabemos é que estes comunicados das empresas também soam muito a falso. É uma sociedade que tenta camuflar os seus vícios sinalizando virtudes que não tem.

E até já se pode pedir à inteligência artificial para escrever uma coisa bonita, que ninguém sentiu.

[Crónica publicada originalmente na newsletter Agora a Sério.]

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