Foi quanto durou o governo de centro-direita. Um ano e um dia. A maioria era relativa, mas a responsabilidade pela queda é absoluta. O governo tornou-se arrogante sem nenhuma razão para isso – se é que há alguma razão para se ser arrogante. Num dia o primeiro-ministro disse que tinha mais do que fazer do que responder às perguntas dos deputados, no outro estava a pedir um inquérito especial, com regras desenhadas pelo próprio.
Tinha algum futuro isto?
Não tinha futuro algum e não tem desde que se soube que Luís Montenegro manteve as suas avenças quando já estava no Governo. Esse é o ground zero desta crise. O caso só se agravou, com tentativas de ludibriar, esquemas e jogadas. Entretanto, deram-se ao sacrifício todos os ministros e até um partido inteiro. Deram a vida política por um líder moribundo que dizia que tinha feito tudo bem, mas depois ia pela calada emendar. Até o hotel onde estava a viver, de repente já estava num quarto em São Bento. Um quarto sem cortinas, segundo o próprio. Quanto tempo precisa o Governo para pôr cortinas num quarto? Precisam de ajuda?
Sobre o hotel, o líder da bancada parlamentar do PSD, outra figura arrogante sem qualquer razão e permanentemente enfadada pela maçada de ter de responder a coisas, veio lamentar que o senhor primeiro-ministro até tenha de explicar o hotel onde residia, como se isto fosse apenas mais um caso da famigerada inveja popular. Não é. Mas não somos o Gulbenkian e gastar o salário todo – o salário todo! – para dormir num hotel não é normal, nem terá, jamais, explicação. Hugo Soares, ao demonstrar que não percebe isto, que é tão básico, devia perder automaticamente o seu mandato, porque não pode representar ninguém.
O caso não é de inveja, mas de perplexidade. De contas que não batem certo. De dúvidas perfeitamente legítimas. Estes novos-mais-ou-menos-ricos da política têm de, no mínimo, dar algumas explicações. É o mínimo e devia ser voluntário. Afinal de contas, o exibicionismo é característica do novo-mais-ou-menos-riquismo.
Regressando ao Governo e ao PSD – e ao CDS, mas pronto – , qual foi a razão para se meterem nesta fotografia? Lealdade? A lealdade não é isto. Isto é cumplicidade. A lealdade dos membros do Governo não é em relação às escolhas que um primeiro-ministro fez na sua esfera pessoal, mas apenas em relação às funções que lhes foram confiadas. Nestes casos pessoais, o Governo, enquanto órgão de soberania, tem de ser logo protegido. É verdade que devia ter sido Luís Montenegro, se tivesse sentido de Estado, a garantir esta separação, mas o chefe do Governo degenerou muito rapidamente e transformou-se num marginal da política. Passava então a ser da responsabilidade dos restantes membros do Governo, que deviam ter negado certos pedidos, que eram pessoais. Ministros de um Governo, a “toque de caixa”, nas televisões e nas rádios a defender o primeiro-ministro é uma completa desgraça para a República. Não há outra forma de o dizer.
E depois do adeus?
O presidente da República encontra-se hoje com os partidos e amanhã com o Conselho de Estado. Já terá alguma coisa pensada, se bem o conhecemos. Ontem foi ao Lidl do estádio do Belenenses, no Restelo. Não sei se encontrou a solução.
As eleições parecem inevitáveis, desde logo pelo que acabámos de tratar. O PSD sacrificou-se em nome de Montenegro. É fiador. No lugar de Marcelo, eu até podia pedir-lhes outro governo, mas não ia aceitar, com elevada probabilidade, alguns nomes. Não deixaria de usar esse instrumento, ainda assim. Como não deixaria de equacionar nada, um novo governo saído desta composição parlamentar ou mesmo de iniciativa presidencial.
Mas nada parece fácil. E o Partido Socialista, que é o líder da oposição, também demonstrou ontem e nos últimos dias que quer a crise. Ou não sabe. Pode não desejá-la, mas confortou-se com a sua verificação. Percebeu-se que os socialistas já não querem apenas respostas, querem a comissão parlamentar de inquérito. Querem barulho. Sempre quiseram. As respostas nunca seriam suficientes, continuariam sempre a aparecer. Pela minha parte, não concordo com a estratégia. De um ponto de vista político, não há nada a apurar, nem precisamos de respostas. Já percebemos tudo. De um ponto de vista legal, bom, isso jamais defenderei que deva ser tratado no Parlamento. Já tem sido feito, condeno sempre. Portugal é um Estado de Direito, com instituições e órgãos com competências próprias. O Parlamento fazer investigações e julgamentos é uma aberração.
A defesa da CPI é, portanto, frágil. Percebe-se que optaram pela crise. Aliás, não havia forma mais célere de avançar para a CPI do que ter viabilizado, ontem, a moção de confiança. A comissão arrancava nos próximos dias. E podiam ter viabilizado a moção, porque o país compreendia perfeitamente o voto táctico. Não seria nada uma aprovação de tudo o que o Governo tem feito, como defenderam o líder do PS e a líder da sua bancada, num discurso muito superficial e até infantil, como têm sido muitos nos últimos dias. O Parlamento, ontem, parecia uma reunião de juventudes partidárias, desgraça que cheguei a prever aqui, pelo caminho que isto levava. Atrevo-me a dizer o seguinte: Ontem, no debate da moção de confiança, o Chega até parecia respeitável. Isto para se ver onde estão a chegar PS e PSD.
Mas enfim, vamos esperar pelas reuniões em Belém e pela decisão do denominador comum de todas as crises. Não há cenários bons, mas o pior, na minha opinião, é o de eleições com as mesmas lideranças nos principais partidos. Uma mera repetição da eleição anterior é o pior cenário, isto para não lembrar um calendário constitucional que pode provocar a tempestade perfeita de instabilidade política.
Crónica publicada originalmente na newsletter Agora a Sério.