Quando falamos do tema da imigração e mais concretamente do reagrupamento familiar, é bom ter sempre presente que tal reagrupamento é desejável. Podemos discutir políticas de imigração, se queremos mais, menos, se não queremos, tudo isso é discutível. Mas quando recebemos milhares de pessoas – como aconteceu em Portugal -, já se passou a fase de discussão de políticas de imigração, pelo menos em relação aos que já estão autorizados. Esses já cá estão, cumpriram o que lhes foi pedido e manda o humanismo mais básico que se defenda o reencontro das famílias.
Mas não é só o humanismo mais básico que manda neste caso. Há um argumento mais egoísta. Também é estratégico o reagrupamento porque facilita a integração e traz mais mão-de-obra cuja origem já se conhece – já cá está alguém e a cumprir as suas obrigações.
Ora então, aceitando que o reagrupamento é em teoria desejável, aquilo que se deve debater, neste âmbito, é como é que tal reagrupamento se processa. Isso, sim, já merece reflexão, para o bem de todos. É que o processo de imigração, em Portugal, não foi pensado nem houve planeamento a longo prazo. Governou aquela ideia de que “precisamos de mão-de-obra barata, ainda mais barata do que a nossa, venham todos, está ali uma enxada…”.
O reagrupamento devia ter sido gradual, sustentável, os processos deviam estar ligados. O próprio Estado, no seu interesse, devia ter promovido esta segunda fase desde o início do pedido original. Como não foi, lidamos hoje com circunstâncias que nos obrigam a ter mais cuidado. Um cuidado que não se deve a perigos que as pessoas e as suas origens representam, mas deve-se, de forma muito simples, à capacidade do Estado Social resistir ao impacto da entrada, no sistema, de milhares de pessoas ao mesmo tempo. Na Saúde, na Educação, também na Habitação, é preciso termos resposta e resposta para todos. Para os cidadãos que aqui nascem, para os imigrantes que já cá estão e para as famílias que se devem juntar.
Lembremo-nos que este Estado Social de que falamos já estava a ruir, sobretudo na resposta da Saúde, antes da chegada de milhares – milhões – de imigrantes. É elementar reconhecer que mais pessoas – utentes – significa mais problemas. Objectivamente, não podemos fugir disto. É a realidade. Devemos é atacar os problemas e não as pessoas. Esse é o desafio e deve ser urgente.
Entretanto, temos de ter em consideração outro efeito da falta de planeamento no processo de imigração. É que já temos regiões do país com praticamente metade da população estrangeira. Com o reagrupamento, podemos chegar aos 3/4 da população com a sua origem noutro continente, a um dia de avião de distância. Não é a melhor forma de integração, não foi uma política de imigração amiga da própria imigração. Há diferenças culturais assinaláveis e não só não se absorveu o impacto, como se permitiu o choque.
Não vale a pena fazer-se comparações com a emigração portuguesa em França ou na Suíça, por exemplo. Portugueses, franceses e suíços partilhavam tudo, menos o nível de riqueza. A realidade da imigração em Portugal, hoje, é completamente diferente. Não é pior, nem tem de ser combatida. Mas é diferente e se não percebermos estas diferenças, continuando a alimentar tiradas demagógicas de quem só vê a imigração quando ela lhe leva o jantar a casa, não conseguimos ter sucesso nesta grande empreitada.
Quase a chegar ao fim, gostava de voltar a lembrar que esta discussão demográfica tem uma história. Hoje, para defender a imigração, um dos argumentos mais usados passa por lembrar as contribuições para a Segurança Social. Os imigrantes equilibraram-nos a previdência. Falta-nos mão-de-obra e eles são a salvação. São mesmo, ninguém pode negar. A história que importa recordar é a de Cavaco Silva, que esteve quase duas décadas a alertar para o problema. Podemos não gostar do ex-presidente, do ex-primeiro-ministro ou do ex-ministro das Finanças – pode escolher o que mais o revoltou -, mas nisto esteve sempre certo. E falou, falou, falou. O país preferiu fazer piadas, porque um dia Cavaco perguntou o que era preciso fazer para que nascessem mais crianças em Portugal. Era uma boa pergunta.
Ninguém ouviu a chamada “múmia”, mas a nossa crise política é tão séria que até a “múmia” parece mais viva que todos. Ao longo destes anos, fez-se uma coisinha aqui, outra ali, uma extensão – com divisão – da parentalidade, uma majoração nos abonos, uns manuais escolares gratuitos, assim umas coisinhas. Mas nada de plano nacional, de desígnio, de ligação com outras áreas da governação. Portugal não tem sido um país amigo da natalidade. Tivéssemos feito um grande plano de incentivo à natalidade, com condições reais, quando Cavaco começou a pôr o tema na agenda, e as “crianças” estavam agora a entrar no mercado de trabalho.
Fazer a história é importante para que não se repitam os erros, apesar de achar esta ideia muito ingénua. Agora é preciso olhar para a frente e tentar ser competente. Portugal precisa da imigração e de a integrar da melhor forma, objectivo que tem de contar com o reagrupamento. A nacionalidade não deve ser uma prioridade nem devia ocupar o debate quando há ainda tanto para fazer. É preciso reforçar o Estado Social para dar resposta na Saúde, na Educação e na Habitação. É preciso promover uma distribuição mais equilibrada das pessoas que chegam. É preciso organizar e combater abusos.
Ao mesmo tempo, também é preciso recusar discursos que promovem o ódio e só revelam falta de mundo e de cultura. A sociedade portuguesa está a sofrer uma transformação, mas não está a ser atacada. Haverá nomes diferentes, sim. E então? Viajar podia ajudar aqueles que não dormem por ver um Mohamed numa lista. Ou uma Yana. E se faltam vagas nas creches e nas escolas, temos de abrir mais. Se falta médico, temos de ter mais. É isso mesmo que importa discutir.
Nenhum imigrante tem culpa de não sabermos desenhar planos a longo prazo e da inércia na resposta quando nos deparamos com as crises. Não são eles os responsáveis por navegarmos sempre à vista. Agora estão cá para ajudar. É preciso trabalhar numa sociedade que será maior e mais variada. Ainda bem. Nunca tivemos problema com isso. Patriotismo é avançar para mais esta epopeia com a coragem com que em tempos não recusávamos nenhuma.
[Crónica publicada originalmente na newsletter Agora a Sério.]


