Para discutirmos este assunto, ainda por cima com tantas suspeitas de corrupção e interesses, impõe-se um disclaimer: Não tenho um único imóvel. Nem rústico, nem urbano, nem agrícola, nada. Os meus únicos imóveis são três lugares em Alvalade, mas que tenho de renovar a cada época. A aumentar o meu património imobiliário nos próximos tempos, também passará por aqui, por mais lugares em Alvalade.
Pronto, agora vamos ao trabalho. Identificar o problema até identificámos bem. Há uma crise de habitação, nomeadamente de falta dela. O país está a receber população como nunca, a economia também se vai desenvolvendo, não há casas para todos. Como não há para todos, os preços sobem. Não é novidade, é sempre assim. Com uma agravante, no nosso caso: É que o país tornou-se interessante para outros povos, porventura mais endinheirados – o que não é difícil -, fenómeno que ainda fez subir mais os preços. Ele foi reformas douradas, vistos Gold, há um cabaz de explicações para a crise na habitação.
Especulação também há, sim, da encartada e da outra. Eu explico. Nestes tempos, quer tudo fazer dinheiro. Está nos livros. Não é só o abutre do fundo. Aquele que esperneia com os preços terríveis das casas e com os abutres dos fundos, também espeta com o pardieiro que herdou nos arrabaldes, de duas assoalhadas e sem telhado, por 550 mil euros. Isto da avareza é uma coisa que se adquire muito facilmente. Pior do que a gripe e não é sazonal.
Ora bem, quando não há casas para todos e as que há estão muito caras, só há uma coisa a fazer: É mais casas. Isto pode ser feito, por exemplo, reabilitando as que estão abandonadas – nomeadamente as do Estado – e construindo novas. Parece-me evidente. A prioridade deve ser dada à reabilitação, sobretudo quando vemos que há muito por reabilitar nas nossas cidades. A Justiça deve resolver com mais celeridade aquelas heranças disputadas há séculos, o Governo deve penalizar fiscalmente quem tem imóveis parados e o Estado tem de despachar o património que tem aos pontapés, também ele muitas vezes abandonado. Tudo verdade, mas não chega. Ajuda, mas não resolve, até porque tudo isto, ainda que fôssemos bafejados ineditamente pelo poder da eficácia, leva o seu tempo.
É preciso, portanto, construir. Abrir buracos, fazer fundações, meter coisas lá para dentro, erguer os alicerces, despejar betão, manobrar camiões, montar gruas. Antes disso, claro, também é preciso um espaço – um terreno – e aqui começaram os problemas. O Governo, ainda no ano passado, aprovou uma lei que altera – ou potencialmente altera – a finalidade dos solos, permitindo que os rústicos se tornem urbanos, entre outras coisas. Estou a resumir. A ideia é ter mais espaço para construir. A lei tem condições e limites, todos eles podem ser discutidos – a discussão é sempre importante e todas as propostas podem ser melhoradas -, mas o grande objectivo é este: Mais terrenos para construir.
Aparentemente, faz sentido. O país tem vindo a discutir o problema da habitação, é consensual que há um problema ao nível dos preços e da oferta, portanto criar condições para mais construção devia fazer sentido. Mas qual quê!? Antes de se construir qualquer habitação, armou-se uma barraca. Começa pela promulgação presidencial, que seguiu com um diagnóstico de entorse. Marcelo é presidente, professor, comentador, nadador e agora também ortopedista. Promulgou, sim, mas disse que ia ali com uma entorse. Só mandou fazer gelo, porém, porque há um PRR para gastar.
Entretanto, a oposição acordou e tem sido um escândalo. A oposição e não só. A grande crítica é a de que esta lei abre a porta à corrupção e à especulação. Sem surpresa, recorre-se às armas populistas que tanto se critica. Mas neste caso ainda foi pior, porque o Chega só diz que os políticos são corruptos. Sobre esta lei, tenho ouvido que é tudo corrupto, os políticos (neste caso, os autarcas), os proprietários e os construtores. E há outra diferença: É que os demagogos do Chega dizem que os políticos são todos corruptos – ou seja, presente. Pois estes agora dizem que vão ser todos corruptos – ou seja, futuro. Ainda não são, mas vão ser, com esta lei.
Com todo o respeito, é de se evitar este discurso, sobretudo quando somos os primeiros a criticá-lo. De outro modo, ficamos iguais. Sem tirar nem por. Tais mudanças poderão dar azo à corrupção e à especulação? Sim. Na verdade, pode tudo, é por isso que o Estado deve ter instrumentos de controlo e fiscalização. Recuso-me é a avaliar as qualidades e eventuais benefícios de uma medida só porque é tudo uma cambada de corruptos. Ou melhor, porque “vai ser” tudo uma cambada de corruptos. Isto é que gostava de evitar. Até porque, esta abertura legal, em bom rigor, até pode contrariar o negócio dos interesses. Na clandestinidade trabalha-se muito melhor, confiem em mim, que não sou corrupto mas podia muito bem ser, porque sei algumas coisas.
Arrumada a questão demagoga, lembraram-se de outra boa para malhar na lei, só para malhar. O raciocínio político funciona muitas vezes assim: Eu tenho de malhar nisto, agora encontrem-me argumentos. É aqui que entram as equipas de assessores e às vezes de especialistas em comunicação. Qual é então o outro argumento? Temos é de densificar – que é como “eles fizeram no estrangeiro”, mentira, mas já la vamos. Precisamos de casas, mas não podemos construir mais nada. Razão têm aqueles pobres imigrantes, que andamos a explorar sem grandes preocupações, que vivem aos 30 num quarto. Aquilo é que é urbanismo. Vamos lá então densificar. Se um dia passarem por Alfama e parecer Manhattan, por favor não estranhem. Densificámos. É assim, aliás, que devem funcionar os transportes público, ouvi alguém explicar. Não é comboios a levar as pessoas para fora. Não, é carrosséis. Andamos à volta da cidade, aqui todos densificados. Parece que também é assim que se faz lá fora – dizem -, isto o problema é nós não sermos viajados. A densificação é o que está a dar.
Só há aqui uma pequena questão. É que a densidade populacional de Lisboa está perfeitamente na média das capitais europeias, sendo até talvez superior à média. Admito que não fiz um estudo muito aprofundado, mas é ir confirmar. Para além disso, a área urbana em torno das capitais europeias, em geral, levar-nos-ia a urbanizar, na região de Lisboa, até às Caldas da Rainha e Montemor-o-Novo. Aliás, é justamente a densidade populacional na região de Lisboa, e não na cidade, que cai a pique, para níveis do Saara.
Ou seja, tretas. Balelas. Conversa. Lembraram-se da densificação. Construir em cima da construção, talvez. É assim que resolvemos com urgência a crise da habitação. Em Lisboa, agora me lembro, talvez se possa acabar com Monsanto, que aquilo é só ervas. Assim evitamos construir num terreno qualquer que não serve para nada – nem agrícola, nem urbano, nada – na Malveira, por exemplo. E no Parque Eduardo VII também há muito espaço para construir. A EPUL devia avançar já, agora. Estamos à espera de quê para densificar e poupar o Poceirão!?
Entretanto, esta lei vem na sequência de uma do Governo anterior, que permitia quase o mesmo, mas só construção pública e tinha de ser contígua à malha urbana. O argumento contíguo percebo, mas de repente não estou a ver que o “mercado” vá construir prédios no topo de uma montanha. Até se pode melhorar a lei, mas raramente os investidores querem erguer construção em locais inóspitos, só alcançáveis de teleférico, sem nada à volta. É raro. Quanto ao argumento público, com a crise a que assistimos, sabemos que o Estado demora muito mais – em virtude dos processos a que está obrigado – do que os privados. É a diferença entre casas em 2 anos ou em 10. Mesmo a reabilitação, sempre mais simples, o Estado leva anos, qualquer privado leva meses. Depois há aquela bênção de serem os investidores privados a meter o dinheiro e não o Estado, que fica ali, na maior tranquilidade, a cobrar impostos com tanta economia a mexer. (Ainda assim, para não sair de cena e impor alguma competição, acho que o Estado também deve entrar no combate a esta crise como agente activo, ou seja, construindo. Mas isso, agora, seria outra discussão.)
Por fim, o último argumento: O dos preços. Dizem, os críticos, que isto é para deixar os especuladores a vender casas para ricos. Enfim, não estou a ver esse “Condomínio das Patinhas” na Lourinhã, mas pronto, é a conversa do costume. A lei tem um limite que me parece razoável, admitindo, no entanto, que não sou especialista. Por alto, falamos de medianas dos preços do concelho, ou seja, entre o mais alto e o mais baixo, portanto são tectos razoáveis. Repare-se: Já que temos de resolver a crise na habitação, era bom que fosse com boa construção – e ambiental, já agora. Bons isolamentos, por exemplo. Não se pode exigir, nem ao Estado nem aos privados, que construam rapidamente e bem, mas depois vendam ao preço de uma ruína. Devem ser estipulados limites, sim, porque eles “andem aí”, mas que permitam também esta relação entre habitação acessível e boa construção, na certeza de que mais oferta fará baixar os preços. De outro modo, impomos limites que têm um resultado muito simples: Ninguém constrói, ou seja, fica tudo na mesma. A verdade é que fazemos muitas leis destas.
Concluindo, as críticas a esta lei – em geral, não a detalhes que podiam sempre ser melhorados -, parecem-me apenas de má-fé. Para bater, para malhar. Gritam que querem casas, mas depois não as querem fazer ou não deixam que as façam. Bloqueiam tudo com utopias de que vamos todos morar para a Avenida da Liberdade, graças ao milagre da densificação, que leram na internet. Não são casas que querem, são percepções de casas. Não existem, porque não as podemos fazer. Não deixam. E a verdade é que, se começássemos a resolver a crise da habitação, muitos perdiam mais uma bandeira política. Às vezes é isto que, mesmo inconscientemente, lhes passa pela cabeça.
Se queremos resolver a crise e ter mais casas e mais baratas, precisamos de mais construção, mais construção fora dos grandes centros urbanos, precisamos de mais transportes públicos até lá, precisamos de crescer, crescer de forma sustentada, respeitando a natureza, responsabilizando todos os decisores no caminho, tanto ao nível judicial, como no plano político. Mas é preciso fazer e é preciso que deixem fazer.
Não é com manifestações nas avenidas que se resolvem as crises e que se melhora a vida das pessoas. É fazendo. Por isso, deixem fazer. Saiam da frente. Vão-se densificar.
[Crónica publicada inicialmente na newsletter Agora a Sério.]