Quinta-feira, Novembro 20, 2025
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O poder da simpatia

Somos ruidosos nas discussões, mas discretos na concórdia e tímidos com a simpatia, que resolvia muitos problemas e é grátis. Crónica de um estudo sociológico por mero acaso.

Por obra do acaso, deparei-me há dias com um estudo sociológico de rua, instantâneo e muito rápido, com dois indivíduos que representavam na perfeição os dois únicos tipos de pessoas que vigoram.

Eram dois homens, sensivelmente da mesma idade, com a mesma profissão e naquele preciso momento com a mesma missão e os mesmos meios. Isto é perfeito. Repare-se: duas pessoas, nas mesmas condições, com o mesmo objectivo e observando-se uma à outra.

Jamais teria olhado para o caso como um estudo, não fosse a diferença de comportamentos que comecei a notar. Explico.

Ao descer a Calçada do Galvão, em Lisboa, noto que estão a parar o trânsito. São duas motas da GNR – ou seja, os nossos indivíduos. Percebo que os cavalos da GNR estão a vir da Calçada da Ajuda para descer até Belém, pela Rua dos Jerónimos. É costume. Percebendo que os cavalos ainda estão longe e que os militares da Guarda só estão a travar a própria da Calçada do Galvão, sugiro – porque não estava eu a conduzir – seguirmos o nosso caminho, que seria pela direita, em direcção ao Ministério da Defesa.

Avançamos então. Nisto, vem de lá um dos militares da GNR, em alta velocidade, coloca-se à nossa frente, trava-se todo e com enorme autoridade faz-nos sinal para encostarmos imediatamente. Credo. Vendo aquilo, comentei “querida, são os cavalos, mas para isto tudo devem ser outra vez as invasões francesas”.

Já connosco totalmente imobilizados e preparados para a batalha escondidos no tablier, o militar segue o seu caminho e coloca-se no meio de mais um cruzamento, a parar tudo também ali. Os cavalos, entretanto, começavam a ver-se, mas longe e vinham à velocidade de cavalos de cerimónia, muito elegantes, sem pressa. Era mesmo a banda, não eram as invasões.

Nisto, outro automóvel, dois ou três metros à nossa frente, começa a sair do estacionamento. Não se tinha apercebido e preparava-se para arrancar. “Se ele segue é abatido”, pensámos. Não seguiu. Deve ter estranhado toda aquela calma na rua, incluindo a nossa paragem ali, tendo ficado então a tentar perceber. É nesse momento que vem o segundo indivíduo do estudo – o outro militar da GNR, noutra mota. Muito mais calmo, vê o carro preparado para sair do estacionamento e diz-lhe para seguir e ir à vida dele – a nós não nos disse nada porque não reparou, podíamos estar só a namorar (não seria a primeira vez num habitáculo). A verdade é que o outro cidadão a sair do estacionamento tinha tempo para seguir, ir lavar o carro, tirar um curso, fazer um filho – contando com a concepção e gestação -, até os cavalos se aproximarem. Nós naturalmente também seguimos, depois de invocarmos um para o outro o princípio da igualdade consagrado na Constituição da República Portuguesa. Passámos então todos pelo primeiro militar, que entretanto estava à conversa com o segundo, o que lhe valeu a oportunidade de fingir que não nos via a tentar chamar-lhe os nomes todos que existem e até alguns que criávamos só para aquela ocasião.

Esta foi a primeira fase do estudo. Mas não acaba aqui. Só dava para perceber já uma enorme diferença entre os dois indivíduos. Um rude, autoritário, pouco perspicaz, que atrapalha e gosta de dar mais espectáculo que os, sei lá, 50 cavalos. Outro calmo, ponderado, eficaz, com uma autoridade natural que dispensava levantar-se e sentar-se da mota agitadamente, gesticular e abanar-se como se uma vespa asiática lhe tivesse entrado pelo capacete ou pela farda.

Seguimos então, fomos a uma bomba de gasolina ali perto – veja-se bem o tempo que havia – e acabamos por iniciar depois uma rota que, suspeitava eu, podia levar-nos novamente ao encontro não necessariamente dos cavalos, mas daquele cavalo de aço montado pelo militar ansioso. Tentámos. Podíamos ter a sorte de conseguir passar, como se corrêssemos para o último ferry. Reduzimos a caixa, foi aplicada toda a força no acelerador, deu-se o boost da bateria, eu saí para não fazer peso, aproveitou-se a zona da pista limpa e… quem é que aparece primeiro no cruzamento? Exactamente.

Lá estava ele, ainda a tentar livrar-se da vespa asiática. Tudo parado de Lisboa a Vladivostok por causa de cavalos que ainda nem tinham nascido. Não dava para acreditar. Era o destino. Tínhamos de ver os cavalos a passar, porque tínhamos. Mas antes disso, quem aparece? Sim, o nosso amigo, o segundo militar da Guarda desta história e segundo indivíduo do nosso estudo. Lá vem ele. Aproxima-se do cruzamento e olha à sua volta, para ver a arte do seu colega a imobilizar desnecessariamente pessoas. Aparentemente, desta vez, estava tudo bem. Não nos mandou avançar, até porque naquele momento o colega já estava no meio do cruzamento tipo touro mecânico. Mas fez uma coisa, o militar número dois. Olhou para nós, já previamente parados, e fez um sinal simpático com a mão como quem diz “estão aí bem”, agradecendo em seguida. Agradeceu. Não tinha essa obrigação. Ou tinha, mas já não se tem. Foi apenas simpático. Educado.

Havia mais. Quando este militar arranca para ir parar lá mais à frente, passa por nós devagar, sem correria alguma, e agradece outra vez, agora de viva voz. Nós retribuímos, eu muito discretamente, mas houve quem gritasse pela janela “obrigada eu, tenha um bom dia”. Até perguntei se não teria sido ligeiramente exagerado, mas depois percebi que se somos efusivos nas discussões, será que não devemos ser também na amabilidade, no cumprimento? Se fosse uma discussão, andávamos todos aos gritos e eventualmente ao estalo, muito nervosos. Será que não devíamos ser mais estridentes quando acabamos de ser bem tratados e respeitados? Quando acabamos de conhecer alguém simpático, cordial, que nos anima e alegra com um simples gesto, em vez de deprimir ou irritar com outro?

Talvez por isso tenhamos a sensação de que anda sempre tudo muito triste e muito agitado. Porque o ruído de uma discussão não se compara. Não fazemos o mesmo barulho quando é de concórdia que se trata. A buzina de um automóvel ouve-se muito bem à volta, mas um gesto de agradecimento fica só entre dois. No Parlamento, as sessões são marcadas por discussões muito duras. Nunca se vê depois, nos corredores, os sorrisos às vezes de grande amizade.

Regressando ao estudo, não se trata aqui de ficar satisfeito apenas quando fazem aquilo que queremos, porque o segundo militar também nos travou e disse que ali tínhamos de ficar. É a forma. São as maneiras. E é quase sempre a forma. São quase sempre as maneiras.

Resolvia-se tanta coisa apenas com simpatia, que ainda por cima é grátis. Não era preciso dinheiro, autoridade, poder, leis, regras ou força, bastava simpatia para resolver com apenas um gesto uma série de coisas. E das mais sérias.

[Crónica publicada originalmente na newsletter Agora a Sério.]

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