Devíamos estar no segundo mandato do presidente da República, que são quase sempre diferentes do primeiro, mas parece que estamos no segundo presidente do mandato. Pode parecer estranho e porque é mesmo. Há uma diferença entre este Marcelo, dos últimos dias, e o outro, dos últimos anos.
Na declaração desta noite, em que anuncia a dissolução do Parlamento e a convocação de eleições, foi exaustivo no enquadramento – isso nem será novo -, mas depois decide concordar e pedir concórdia. Aceitou a sugestão dos partidos e do Conselho de Estado. Pede debate político, naturalmente elevado, durante a campanha.
Não há recados, não há exigências, não há ultimatos, não há linhas, não há recomendações, não há um aviso, não há nada a registar. Só palavras preocupadas – não é para menos – e o cumprimento do dever constitucional. O presidente da República parecia o conservador do registo constitucional. Menos que isto só se fosse à porta do palácio de Belém e fizesse a leitura, aos jornalistas, da convocatória das eleições.
Mas tenho de concordar com este presidente da República que hoje apareceu na Sala das Bicas. É preciso pôr água na fervura e Marcelo fê-lo até no tom. Pela minha parte, tive de ser acordado duas vezes e acordei outras pessoas, outras tantas. Mas era preciso. O clima político está explosivo e a deterioração agrava-se de dia para dia. A possibilidade de semanas seguidas de ataques e acusações pessoais é grande. O país pode passar ao lado destas eleições, transformadas em rixa política.
Justifica-se, portanto, esta opção do Chefe de Estado pelo discurso apaziguador e pela pose amável, como quem diz que não é preciso chatearem-se, estava tudo a correr tão bem, há tantos problemas e nós vamos arranjar ainda mais.
Sim, justifica-se a estratégia, mas há um problema. Marcelo, assim, faz lembrar o lobo mascarado de avozinha, a tocar à porta de casa do Capuchinho Vermelho. Com uma diferença: No caso da fábula, sabemos o que acontece quando o lobo entra. No caso de Marcelo, não fazemos ideia. Ninguém sabe. Nem o próprio. Pode comê-la, mas também pode dar-lhe o jantar, pôr a loiça na máquina e voltar a sair.
O apelo à calma de Marcelo não funciona, porque banalizou de tal forma a sua palavra que já não se distingue assim tanto no meio de todas as outras. E Marcelo é fogo, é paixão, é agitação. Esta normalidade não lhe cai bem. Estranhamos. O presidente da República enviou para as alminhas, há já muito tempo, a sua gravitas.
A consequência seria sempre esta. É o custo da proximidade, das selfies, dos comentários diários, da intromissão em episódios políticos. Corria-se o risco de o presidente ser apenas mais um político ou mesmo só mais um comentador, desta feita com poderes constitucionais. E foi o que aconteceu. É hoje então o tal conservador do registo, que diz uma data e convoca pessoas. O peso político foi-se ou é melhor que não o use. Estará com medo porque o mandato aproxima-se do fim e a probabilidade de deixar o país num caos não é pequena. É, aliás, enorme. Começou a esconder-se. As “escolhas” já são dos partidos e do Conselho de Estado. Ele, o presidente, só os ouviu. E parece que era tudo – tudo isto que se passou – inevitável.
Agora, sim. Talvez fosse inevitável. Mas não foi sempre. Não era inevitável perder-se a figura do presidente da República, o seu peso, a sua autoridade, mas sobretudo a sua independência. Não foi tudo em selfies, que também não causam assim tantos danos, foi, por exemplo, o dr. Nuno e o erro do presidente em pedir à Casa Civil para ver do que se tratava. Isto fragiliza um presidente, para além de poder deixá-lo nas mãos dos partidos. Não sabemos se foi este o caso, sabemos que mudou.
Conheço, mas não subscrevo a teoria de que está a proteger o seu partido. Não acho que seja esse o caso. É não o conhecer. Marcelo só se protege a si próprio. E será isso que está a acontecer.