Perdoem-me o centralismo, mas é inevitável falar de Lisboa, uma cidade cada vez mais agreste. Nada disto tem a ver com política e com a aproximação de eleições autárquicas – também seria uma discussão interessante, mas não é para agora. Vamos falar de coisas muito maiores, muito superiores. Vamos falar da natureza e da sua força.
É verdade que Lisboa nunca foi uma cidade simpática e afável, sempre foi rude e inóspita. Não é para todos. É preciso instinto de sobrevivência. E bom calçado. Falamos de uma cidade que mata os seus habitantes e quem a visita através do pavimento. No mínimo, parte-lhes alguma coisa. As radiografias estão entre os souvenirs mais procurados pelos turistas. – Então, o que é que trouxeste de Lisboa? – Uma prótese e dois parafusos.
Mas a calçada portuguesa não serve apenas para controlar a população mundial. Também é muito útil para assaltar lojas e residências, bem como ganhar vantagem numa altercação na via pública. É como se a cidade oferecesse soluções em qualquer situação. Deixei as chaves dentro do carro? Basta olhar para baixo. Preciso de entrar neste estabelecimento encerrado para furtar artigos e/ou dinheiro? Basta olhar para baixo. Ai eu é que não sei fazer rotundas, seu ordinário? Basta olhar para baixo.
Com efeito, fala-se numa crise na habitação, mas os portugueses já deviam ter todos o seu castelo, porque se há coisa que sempre encontram é pedras no caminho. Com todo o respeito, quem ainda mora em casa dos pais é porque é preguiçoso. A câmara deu-lhe os materiais de construção.
Sobre o controlo populacional, a calçada portuguesa é particularmente eficaz em descidas e quando chove. Muita gente não sabe, mas a calçada portuguesa foi inventada pelos ortopedistas. Sendo que há quem diga que a especialidade só apareceu depois da calçada e para responder a tal flagelo. Uma coisa é certa: Lisboa não é mesmo para todos. E muito menos para quem usa sola rasa.
Mas pronto, até aqui tudo bem e as pessoas vão conseguindo gerir, passando conhecimentos de pais para filhos. O problema é que, de repente, há muito mais ameaças em Lisboa. Há unicórnios à solta, trotinetes em contramão, ventos ciclónicos, chuvas torrenciais, terramotos e poeiras do norte de África. Como se tudo isto não bastasse, cheira a azeite.
A cidade cheira a azeite. É a capital do país. As pessoas chegam aí e pensam que aterraram no couvert. São os ventos de sul, dizem. Não contesto, não percebo nada de ventos. Hoje, por exemplo, temos as poeiras e o cheiro a azeite. As alterações climáticas atingiram-nos, pelos vistos, com particular dramatismo. Subida das águas, está bem. Incêndios, pronto. Gelo, certo. Ondas de calor, ok. Estava tudo previsto. Mas bagaço de azeitona?
O cheiro, hoje em Lisboa, assemelha-se ao daqueles sabonetes que adquirimos nas feiras biológicas e artesanais, quando achamos que jamais voltaremos ao cocktail químico da indústria da higiene. Não sou de intrigas, mas tem de se resolver isto. Quem visitou a cidade nas últimas duas semanas, pelo menos, foi daqui a dizer que Lisboa é muito bonita, mas cheira a despensa. Nem quero pensar naquelas zonas da cidade que são conhecidas por outros odores. Aí é uma mistura de azeite com urina de mula bêbada. Coisinha a pender para o repugnante.
Não é de excluir, pela frequência dos episódios, a confluência trágica de todos estes fenómenos num só dia, com poeiras do norte de África, a terra treme, cheira a azeite, chove como nunca e o vento derruba os jacarandás todos. A população a tentar chegar a casa, mas a calçada a travá-la.
Não gosto de ficar pelas críticas, é verdade. Vamos então terminar com soluções para isto. Desde logo, é preciso convencer o anticiclone dos Açores a ficar no seu lugar, se preciso for criando um pacote de incentivos fiscais para anticiclones. Isto está cada vez mais tropical e andarmos todos a colar era mesmo, depois de tudo, o que faltava. Ainda pensam que é do azeite. Por outro lado, creio – sem certeza -, que estes ventos de sul também podem estar relacionados com o bicho carpinteiro do anticiclone. Mais um argumento para o convencer a ficar quieto.
Entretanto, talvez seja de se trabalhar a azeitona apenas quando os ventos estão para Espanha, sendo que não lhes podemos dizer isto. Quando os ventos estão assim, para aqui, talvez seja de se trabalhar outra coisa, tipo baunilha, porque assim isto fica a cheirar a táxi. Não é perfeito, mas pronto. Há ainda a hipótese de se fazer um exaustor gigante no céu, numa obra aparentemente complexa, mas quem organiza a Jornada Mundial da Juventude, em tão pouco tempo, é capaz de fazer tudo.
[Crónica publicada originalmente na newsletter Agora a Sério.]