A história conta-se rapidamente, mas eu vou andar às voltas. Faz sentido, voltas também é a vida dos autocarros. No outro dia, fui ali ao supermercado, já o sol se tinha posto. Fui a pé, porque uma pessoa precisa de andar. No regresso, vou muito bem pelo meu caminho quando sinto uma senhora a ultrapassar-me em corrida. Era um autocarro que lá vinha. Até aqui tudo bem. A senhora entra. Estamos a falar da paragem em frente ao Museu de Etnologia, em Lisboa, e pouco passava das 20 horas.
Nisto, vem de lá outra, também em corrida. Eu senti-me apeado no meio de uma auto-estrada e com uma corrida ilegal em curso. Esta segunda pensei que já não ia chegar a tempo. Comecei a fazer apostas comigo – que são as melhores, porque por um lado perdemos, mas por outro ganhámos. O simpático motorista, que já estava a arrancar, voltou a imobilizar-se. Excelente serviço ao cliente. Sucede que a gazela também se imobilizou, ainda no exterior do autocarro, e era agora um preguiçoso réptil. Ficou paralela ao pesado de passageiros e também na horizontal. Espalhou-se completamente ao comprido. Mas que queda. Eu julgo ter sentido uma ligeira onda de choque e ter ido ao ar durante uns segundos. A avenida é a descer, o que é mau porque ainda proporcionou mais velocidade à malograda corredora, para além de lhe dar mais 7% ou 8% de inclinação na queda. É uma questão de ângulos. Se for para cair, que seja a subir.
Não me recordo já do que a senhora vestia, mas tinha muito boa aderência. Devia ser a nova colecção da Pirelli. Parou muito bem, pelo menos no eixo frontal, porque os seus pés, sem encontrarem atrito, pareciam querer continuar a viagem. Ergueram-se então ao alto, transformando a senhora em escorpião durante escassos segundos, os suficientes para me perguntar se seria venenosa.
Eu, claro, já tinha interrompido a marcha e soltado uma interjeição, que julgo ter sido “ai”. Mas “ai”, para o caso, era claramente um eufemismo. O aparato justificava uma prece ou duas, em voz alta. Pelo menos um “thoughts and prayers” numa rede social. Nisto – até aqui a minha atenção estava presa ao vulto estatelado – reparo que o autocarro já tinha fechado a porta e retomado a marcha. Como se nada fosse. Como se só fizessem falta os que já lá estavam (dentro). Como se fosse dada aos passageiros uma única hipótese de acertar naquele buraco da carroceria, vulgarmente conhecido por porta. Como se a mulher tivesse gritado “não esperem por mim, não há tempo, sigam, eu fico bem”, mesmo sabendo que não podia ficar, porque ia ser engolida pela cratera que se abria à retaguarda.
Não posso garantir que o motorista tenha assistido ao tombo, mas uma vez que voltou a parar para a malfadada tentar a sua sorte, e não a tendo nunca visto entrar, é forte a minha convicção de que assistiu à tragédia pelo retrovisor. Já se registou a evaporação de pessoas em contexto de transportes públicos, mas já lá estavam dentro e foi preciso uma reacção química proporcionada pelo aparecimento de um revisor. Portanto, é altamente provável que o chauffeur tenha presenciado a ocorrência e optado por deixar ali a quase-passageira a fazer conchinha com o passeio, viva, morta ou assim-assim. Pela minha presença não deve ter dado, apesar de não ser impossível encontrar a única pessoa de pé num espaço em que só havia duas e uma estava paralela ao solo. Seja como for, era ele que tinha de se assegurar que aquela cliente podia um dia voltar a apanhar autocarros, mesmo que depois de muita fisioterapia. Não a podia deixar nas mãos de um indivíduo sinistro com um saco de compras na mão, numa zona escura, até porque nem sabia se não tinha sido eu a pregar uma rasteira. A escolha foi, claro, por não atrasar a carreira. Alguém havia de recolher a madame, ou o próximo autocarro ou a Medicina Legal.
Adiante. Dou por mim naquela situação desconfortável, com a outra esparramada, ainda sem dar sinal. Pelo desenho da queda, ia jurar que tinha marrado com a testa ou a penca. Estaria a dormir? O cenário havia de ser dantesco. Ainda me passou pela cabeça tirar a carta de pesados à pressa, mandar o currículo para a Carris, fazer a formação, receber um autocarro e abalar dali como se nada fosse, como o outro. É que o meu talento para socorrer pessoas está ao nível de nenhum e consiste em esperar, com um ar preocupado que aprendi a fazer no teatro, que se aproxime entretanto alguém mais apto. Ninguém apareceu. Abeirei-me então e ocorreu-me dar um toque com o pé para ver se ainda mexia, mas felizmente não foi preciso. Lá ressuscitou. Não tinha marrado de cabeça, o que já era uma ajuda. Dei-lhe então uma mão para ficarmos, pelo menos, sentados. Começava a ser ofensivo eu permanecer em pé e a hipótese de me deitar ao seu lado não chegou a ser colocada.
As queixas ficavam-se pelos joelhos. Quer que chame alguém? – perguntei, pensando em alguém competente, com uma carrinha devidamente equipada e no mínimo um curso de primeiros socorros. Não queria, mas depois diz-me que se sente tonta; e pronto, lá retomo eu a ideia antiga de que teria sido inevitável, pela arquitectura do tralho, uma colisão frontal.
Já preparado para chamar o Almirante Gouveia e Melo, percebo que está um automóvel a parar – era o primeiro a dar sinais de querer ajudar, os outros só abrandavam para picar o ponto de mirone. Do seu interior saem duas boas samaritanas, que, pela destreza com que abordam a situação, parecem as pessoas que queremos encontrar quando acabámos de malhar ao lado de um inútil. Com a ajuda de uma delas – eu já só obedecia ao comando no teatro de operações – fizemos backup da senhora e devolvemos-lhe a posição em que estava 1 segundo antes de ser apresentada ao asfalto. Estava quase tudo intacto, excluindo os joelhos e o sonho de conseguir apanhar aquele autocarro e chegar mais cedo a casa.
Entretanto, certifiquei-me de que já não havia tonturas – começava a ganhar confiança – e quis saber o seu nome e local de trabalho, o que é francamente mais útil quando se sabe previamente o nome e o local de trabalho. Mas como não me disse que se chamava Roberto e que trabalhava na NASA, calculei que estivesse a responder correctamente às questões. A partir daí, ficou entregue às duas samaritanas, que até se ofereceram para a ir levar a casa, mesmo não sabendo ainda – e não podiam saber – onde ela morava. Senti-me tentado a pedir-lhes o número, para quando me baldar ou o meu cartão recusar um pedido de Uber.
Enfim, aquilo que importa reter é que não se deve correr para o autocarro, pelo menos quando o nível de dificuldade reduz as hipóteses a duas: o sucesso ou o traumatismo. Do ponto de vista dos motoristas, também era importante darem sempre conta dos passageiros que pareciam mesmo querer apanhar o autocarro. É que, em princípio, não desistiram e acamparam por ali.