Quinta-feira, Novembro 13, 2025

Sobre burcas

Há peças de roupa que devem ser proibidas, sim. São todas aquelas que não se querem vestir. Nesse caso, pode ser uma burca ou uma minissaia.

É um tema muito interessante, apesar de alguns considerarem que não. Não devem ter visto o que se passou no Parlamento nesta semana. Numa ocasião, parecia o Parque Mayer, com um deputado do PSD, em jeito de revista, a ridicularizar o Chega. Houve também reclamações sobre o uso, em discurso, de “gajos e gajas” para se referirem a parlamentares, o que pode ser ofensivo para “gajos e gajas”.

Assim, em perspectiva, olhamos para um debate sobre roupa e regozijamo-nos. Eu regozijo-me.

Entretanto, há outra razão para o tema ter interesse. Não será necessariamente pela burca – que ainda é muito rara em Portugal, mas pode deixar de ser, nomeadamente com o reagrupamento -, mas pelas posições de cada um sobre temas sociais, esses sim, da maior relevância, como a liberdade religiosa e de culto – o que tem de admitir também os seus símbolos -, a liberdade individual e tantas outras liberdades, direitos e garantias. É uma matéria que não vale per se, mas per muitas outras coisas.

Vamos lá e vamos sem preconceitos e tentando fugir ao derby burro entre a esquerda e a direita, porque isto vai muito mais do pensamento, da concepção do mundo e da sociedade, do que de facções.

Primeiro, o argumento da segurança para proibir a burca – a lei é sobre a proibição do uso de roupas destinadas a ocultar o rosto, mas para simplificar falemos sempre da burca. Ora, este argumento é muito válido. Ocultar o rosto é uma questão de segurança. Mas já está previsto. Os motociclistas, por exemplo, não podem abastecer de capacete. Também não se pode entrar de capacete num espectáculo musical, por exemplo. Quem diz o capacete, diz muitas outras coisas. Num estádio de futebol, por exemplo, ninguém entra com o rosto tapado.

Ou seja, a questão de segurança em determinadas situações está já prevista. E as autoridades devem sempre poder exigir que o rosto seja destapado – como podem, apesar de algumas limitações, porque é sempre necessário justificar uma intromissão na esfera privada, sob pena de abusos.

Assim, temos o argumento da segurança – que é válido – garantido. Já existe. Não se pode entrar com o rosto ocultado em muitos espaços. Nem sequer abastecer o carro. Nem ir à bola. E podemos ser revistados, em qualquer ocasião, tenhamos o rosto ocultado ou não. Este princípio de segurança vale para tudo e para todos, para uma burca ou para um disfarce de Carnaval. Nenhuma razão pode ser invocada – nem a religiosa – para se poder permanecer de rosto ocultado.

Curiosamente, na lei agora aprovada, abre-se uma excepção que revela – se fosse preciso – que a preocupação não é assim tanto com a segurança. Diz ele, o legislador, que a proibição “não se aplica sempre que tal aparência se encontre devidamente justificada por razões de saúde ou motivos profissionais, artísticos e de entretenimento ou publicidade”. Ou seja, o terrorista só tem de se mascarar de Lady Gaga. Ou de boneco da Michelin. Creio que, apesar do fundamentalismo religioso, estando em causa o sucesso de um atentado, os terroristas não se importarão de vestir outra coisa. E a burca até era um pouco óbvia, temos de admitir. Ir de Spiderman passa mais despercebido. Numa praça lotada, a burca é repelente. Forma-se um clarão à sua volta. Já o Spiderman aproxima.

Sem surpresa, também nesta matéria, o legislador português só pede que a lei seja contornada. É o costume. No fundo, só tentamos evitar o terrorismo ou eventos de natureza violenta com burca ou com aquelas “roupas lá deles”. Mas apresentamos logo soluções. Apareçam de reclame publicitário, por exemplo. Ou de palhaço. O que passará pela cabeça dos parlamentares? Talvez estejam a pensar na vergonha ou no ridículo que o terrorista possa sentir, desistindo então do que tinha planeado. De burca é uma coisa, mas não vou massacrar nada nem ninguém vestido mascote da Liga Portugal, tenham lá paciência, vão lá vocês.

Resolvida a questão da segurança, temos todas as outras. Há um significado na burca, pois há. Como há em todos os símbolos. Mas a mensagem que a burca transmite não é, em geral, boa, pois não. Pela minha parte, lamento muito o uso de burcas, sinto desconforto quando estou junto a elas – coisa que em algumas cidades europeias não é assim tão raro. Mas não me ocorre libertar ninguém, sobretudo quando nem sei se está alguém preso. Também não acho que deva ser uma missão do Estado. O que o Estado tem de garantir – neste caso, Portugal – é que nenhuma mulher pode ser obrigada a usar seja que roupa for. E o Estado tem de garantir que uma mulher, querendo, pode conduzir automóveis, ou simplesmente circular à frente, falar com outros homens ou mulheres, pagar contas, etc.. O Estado tem de garantir que todas as mulheres, em Portugal, venham de onde vierem, seja qual for o credo ou a cultura, têm os mesmos direitos, direitos que são iguais entre homens e mulheres. Existindo uma queixa ou chegando ao seu conhecimento qualquer violação deste princípio, então o Estado deve agir implacavelmente, detendo e punindo quem limitou, sob coacção física ou psicológica, a liberdade de outra pessoa. E falamos de crimes, na sua maioria, de natureza pública.

Quem escolhe Portugal para viver, tem de saber que também somos radicais e fundamentalistas, mas com os direitos e com a liberdade. Todos são iguais, todos têm os mesmos direitos. Homens e mulheres, todos podem escolher o que vestem, o que comem, em quem votam, com quem dormem, onde o fazem, só meter gelo no vinho branco é que é proibido. Quem escolhe Portugal tem de saber isto. E que somos mesmo muito duros com quem viola estes princípios básicos do nosso Estado de Direito. Estão feitos se vierem para cá a achar que alguém é inferior ou que tem de obedecer a outra pessoa – esta é a mensagem que se deve passar.

Agora… proibir a burca? Assim, genericamente falando? É assim que vou libertar alguém que – insisto – não sei se está preso? Nuns casos estará – se for obrigação. Noutros não estará – se for opção ou crença. E será que não devemos também proibir outras indumentárias impostas por escrituras muito antigas, dos mais variados credos? Quantas religiões têm versões mais fundamentalistas ou ortodoxas, que obrigam os seus membros aos preceitos mais condenáveis? Quantas? Ter de andar na rua com uma tampa na cabeça não é o pior que nos pode acontecer, garanto.

Veja-se bem: enquanto discutimos isto aqui, há mulheres fechadas num convento em clausura, que não dão um pio há anos. Não é de se ir lá dar um pontapé na porta? Eu peço desculpa, mas não sei se estão voluntariamente caladas há quatro décadas. Só sabe do convento quem lá está dentro. Temos de lá ir. Vamos? Não? Porquê? Admite-se que o Estado aceite esta violência contra estas mulheres? Escolheram? Não sabemos. Sabemos que temos de proibir o silêncio imposto por madres e padres, entre outras proibições e violências impostas àquelas mulheres. Certo? E havia mais exemplos.

Mas isto é só sobre as burcas, porque as burcas vemos na rua e não gostamos. Coração que não vê, coração que não sente e por isso toleramos muito abusos longínquos. A burca vai connosco no autocarro e não queremos, não gostamos, por isso decidimos libertar aquela mulher ali, antes mesmo de saber o que pensa. Mais uma opressão. É o marido e somos nós. Ninguém lhes pergunta nada. Decidimos todos por elas. O marido manda pôr a burca, o Ventura e o Rocha mandam tirar. O que pensam elas? Não interessa.

Insisto, as freiras no convento não é tortura pior. Não saem há anos. Nem de burca. E não, não sabemos até que ponto estão lá de livre vontade. Como também não perguntámos, lá está, a quem anda enfiado em burcas, se foi lá parar voluntariamente ou se foi embalada à força. Suspeitamos, é verdade, mas proibições não devem ir lá por aproximação.

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