A notícia escandaliza – é bom que escandalize -, mas tem de ser bem analisada. Há três jovens populares nas redes sociais que são acusados de violar uma rapariga. Combinaram todos um encontro numa garagem em Loures – vão de vídeos no Dubai para garagens em Loures a uma velocidade estonteante -, filmaram e publicaram. Ou transmitiram numa live – até usar os termos me custa. Só por usar o termo live já merecia um upgrade na subscrição. (Ena, hoje foi cedo.)
Entretanto, já chamados pela Justiça, as três vedetas da internet desmentem a jovem. Um deles até fez um vídeo – quem diria!? – a explicar-se. Nas explicações e com a modéstia que com certeza nunca lhe falta, exibiu desta vez a sua deslumbrante inteligência para garantir que até se deslocaram ao local com o criminoso propósito, mas depois terão tido dúvidas quanto ao asseio em geral.
Não havia condições, portanto, para violar ou simplesmente abusar daquela jovem fã, que os admirava. Os jovens, hoje em dia, têm muitas manias. Mas enfim, o evento terá dado qualquer coisa para a tal live – já não se perdeu a viagem completamente -, mas não terá sido aquilo que os três jovens tinham pensado para aquele serão na garagem em Loures. Uma pena. Tudo de volta para o Dubai, assim consigam boleia de um camião a sair do Prior Velho.
A gravidade desta notícia está, claro, na eventual violação, agravada pela partilha. É o que mais nos preocupa, é o nosso maior receio. No entanto, é preciso lembrar que, nesse aspecto, não são apenas os putos estúpidos da internet que violam ou abusam. Artistas, futebolistas, apresentadores, enfim, violadores há muitos e quando se goza de popularidade há sempre mais ocasiões. Fama, poder ou dinheiro são armas poderosas dos abusadores. Quando os abusadores não apresentam nada disto, então são classificados como sociopatas.
Nem sequer se pode dizer que estes putos estúpidos da internet são os únicos – nem sequer os primeiros! – a filmar. Nem mesmo a partilhar – sendo que neste outro caso que me ocorreu talvez a partilha não tenha sido propriamente voluntária. Teve, ainda assim, bastante mais alcance. E ainda não havia internet, a partilha era feita em cassetes VHS. Outros tempos. Mas esta é outra história e não foi a que me trouxe aqui.
Neste contexto – e se concordarmos que o caso, em si mesmo, não é assim tão invulgar -, temos então que parte substancial da revolta resulta da origem destes três jovens, mais uns que vivem – e não vivem mal, entre garagens em Loures e penthouses no Dubai – de dizer e fazer asneiras para um telemóvel. Para a pessoa violada, diria que não é assim tão relevante o currículo do violador, ou seja, se é um imbecil das redes sociais ou um actor premiado. Já para a sociedade, sim, pode importar, nunca para procurar atenuantes, sempre para compreender o problema e atacá-lo.
Se entendermos que a fama, tal como o dinheiro e o poder, potenciam a faculdade do abuso ou da violação, temos hoje mais vedetas do que nunca e a fabricarem-se novos às pazadas todos os dias. A fama vulgarizou-se, está nas ruas. Há uma Marilyn Monroe e uma Grace Kelly em cada esquina. O luxo hoje é o incógnito. A popularidade é banal e pode dar-se hoje pelos piores motivos. Já não se é famoso por se ser brilhante a representar, talentoso a criar um enredo, criativo em qualquer arte ou simplesmente um pão – uma pessoa com boa aparência e elegante. Não, agora é-se famoso, em princípio, por se ser estúpido e quanto mais estúpido, melhor, mais viral, mais fãs, mais alcance, mais dinheiro, mais Dubai.
E não, isto não é conflito geracional algum. É uma crise tremenda. Já não há arte, só parvos, só imbecis, só cavalgaduras. Isto sem exagero. E ainda há mais parvos para assistir a isto tudo e bater palmas. Há umas semanas era outro caso com outro “influenciador digital”, desta feita tinha-se gabado num podcast de mandar uma mulher de guarda-chuva pelos ares, com o seu automóvel. Se este nível de indigência mental não preocupa, não sei o que pode preocupar. Porque estes idiotas têm mesmo muitos seguidores e esses seguidores são os nossos filhos e os filhos dos nossos amigos e a geração que vai pagar reformas. E muitos votam – o que, enfim, pode explicar algumas coisas.
Estes ignorantes estão, não tarda, a violar-se todos uns aos outros, sem nem sequer perceberem, porque entretanto já não falam, só grunhem e comem com as mãos e com os pés. A evolução das espécie entrou em declínio. A racionalidade está em extinção e a estupifidicação em curso. Não é conflito geracional, insisto. Quem diz que é já se anormalizou, já embruteceu, já foi picado. Basta ver o que se consome, basta assistir aos milhões de vídeos que estão pela internet. O nível, a mediocridade. Os estúpidos estão agora a tomar o poder político, mas já têm a sociedade, a cultura, as artes. É tudo deles. Nada contra a existência de estúpidos – no seu habitat natural conseguem até ser divertidos -, mas tudo contra o facto de estarem a tomar o poder. O económico também. Lá está, com a legião de fãs faz-se o que se quer: viola-se, pede-se o voto ou os euros. E eles dão. Dão porque nós permitimos que fossem estupidificados. Não fizemos nada contra isso.
Revoluções culturais houve muitas e agora precisamos de outra. É essencial travar este declínio. Estes episódios vão multiplicar-se até ao dia em que não são episódios e em que é tudo normal, em que violamos, roubamos e matamos para um vídeo que será aclamado por uma turba de hienas – que me perdoem as hienas, porque já pode ser ofensivo dizê-lo. Aquilo que para nós é chocante – três jovens com popularidade na internet aproveitarem-se de uma fã numa garagem -, já não é para muitos outros jovens – e não só – que se estão a rir com a história e à espera de mais. De mais violação e de mais vídeos. Os pais, entretanto, assistem aos Big Brothers, que foi o princípio deste fim. Foi o assalto dos otários, dos brutos, das bestas. Não há inteligência, nem boas maneiras. Só cavalgaduras e cada vez menos excepções.
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