Segunda-feira, Março 17, 2025
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Emoção de confiança

Luís Montenegro não se afasta e arrasta com ele um país inteiro. A AD acredita numa vitória e num reforço, mas o golpe é de alto risco. Só um PS dúbio e errático os pode salvar.

Vota-se esta tarde, no Parlamento, uma moção de confiança ao Governo. A crise com a empresa do primeiro-ministro, que o primeiro-ministro diz que não é do primeiro-ministro, trouxe-nos até aqui, até à iminente queda do Governo. Há substância nesta crise, mas também há algum histerismo. E eventualmente alguns interesses.

Valerá a pena, portanto, uma passagem rápida pelo caso, só para fazer um enquadramento geral. É que já ouvimos e lemos tanta coisa, que em princípio estamos perdidos. Quem gosta – ou precisa de – acompanhar a actualidade, tem de começar a contratar pessoas. É preciso montar uma equipa, vários equipamentos electrónicos, porventura uma ligação por satélite. A verdade é que já não se dá conta do recado, nem com as notificações todas do mundo – que eu, para dizer a verdade, tenho sempre desligadas.

Não sei quando, nem através de quem, começaram a chegar todas estas notícias da vida empresarial do primeiro-ministro, que agora se multiplicam, umas mais úteis, outras mais exploratórias. Admito que tenha existido uma mão invisível nesta divulgação, mas acaba por ser pouco relevante. Os factos são o que são.

Apesar de levar três semanas e muitos episódios, este caso é, para mim, relativamente simples. Luís Montenegro montou uma empresa familiar para manter algumas avenças e negócios que tinha. É costume. Numa situação normal, seria normal – repetição deliberada. A empresa é sua, apesar de oficialmente ser de familiares seus. Ora, considerando as funções que exerce, foi um erro. Pode dar-se o caso de nem sequer poder, mas sobretudo não deve. Quebra-se a confiança com quem lhe legitima o poder. Não se pode exercer cargos públicos e receber avenças de empresários.

Rogando para que não esteja a ser ingénuo, não me parece, no caso de Montenegro, que estejamos a tratar de suspeitas graves de corrupção. Nem me parece que estivesse no Governo a trabalhar para estes clientes. Parece-me, isso sim, que Luís Montenegro quis manter aqueles rendimentos para a sua família, mantendo também a relação antiga com aquelas empresas, e então achou que esta era uma boa solução. Foi péssima. O novo-riquismo dos Montenegro pode vir a sair caro.

Mas aqui reside a simplicidade do caso. Independentemente de leis ou normas, os titulares de cargos públicos não podem estar a ser remunerados por empresas ou interesses, ainda que essas remunerações não tenham qualquer compartida – o que transformaria logo o assunto num caso de corrupção. Digo isto para Montenegro, mas não apenas. Temos muitos políticos a trabalhar à noite – salvo seja -, nas televisões. Recebem de empresários, como Mário Ferreira, com múltiplos negócios, salários às vezes superiores aos da própria actividade política principal. É uma aberração, estas relações não podem existir, porque levantam sempre uma suspeita. Um político, quando em funções, é entrevistado, não comenta nem participa em programas de comentário. Tem um mandato público, tem deveres especiais. Também tem privilégios, mas tem sobretudo deveres. Representam, todos, órgãos de soberania.

Dou um exemplo, mas há muitos, de todos os partidos e feitios. Encontrei, este domingo, Alexandra Leitão na CNN a repetir o que já tinha sido sobre Montenegro mil vezes. É aquele programa que resta da Quadratura do Círculo. Não sei se é remunerada ou não, imagino que sim. Mas ali estava, a comentar, alguém que é líder da bancada parlamentar do partido líder da oposição. Isto para mim, com todo o respeito, não faz sentido. Se aquela presença for remunerada, então o empresário Mário Ferreira está a pagar bom dinheiro à líder da bancada do partido que amanhã pode estar no poder. Nenhuma suspeita tenho sobre o empresário nem sobre Alexandra Leitão, mas mandam as boas regras que as relações não sejam tão íntimas e muito menos de dependência. Porque depois ligam-nos a pedir alguma coisa. E nós não somos ingratos. Problemas que não deviam existir. A independência é uma bênção tremenda. E deve ser total.

Mais: Na véspera, Alexandra Leitão apresentou-se como candidata à Câmara de Lisboa. Ora, no dia seguinte já estava outra vez ocupada com a Spinumviva. Certo, é líder da bancada parlamentar, mas não há mais pessoas no PS? Até o Chega apresenta hoje mais figuras do que o Partido Socialista. Talvez Pedro Nuno Santos devesse dar alguma atenção a este pormenor. E Lisboa merece que a candidata se dedique em exclusividade à cidade, já que falamos em exclusividades. É que a cidade tem sido, eleição após eleição, sistematicamente “usada”. Moedas também não era para ganhar, era só para se mostrar, e está por lá a sonhar, todos os dias, com outros voos. A candidata do PS, pelos vistos, também tem mais do que fazer.

Regressando ao tema. Com o que a política paga em Portugal, compreende-se que tenham de andar em biscates e com segundos empregos, mas isto não é recomendável, sobretudo a certo nível, como o do chefe do Governo. Não pode. Não pode ser pago por empresas, mesmo que sejam só bons amigos e não queiram nada de especial, só tratar de umas papeladas. Pura e simplesmente, não pode. E devia perceber, pelo menos agora – já que não percebeu quando devia -, que não pode. Que é incompatível, que levanta suspeitas e que dá um mau exemplo a todos os agentes do Estado. Se outros fizeram coisas parecidas, se há muitos telhados de vidro, sei que sim, mas quando não queremos ser iguais, convém que não tenhamos as mesmas atitudes. De outra forma, é a política de terra-queimada.

Luís Montenegro devia ter saído do Governo para não o prejudicar. Tinha dado o exemplo e protegido o país. Teria sido patriótico, honroso, e compatível com a convicção que tem declarado de que nada fez de errado. Seria assumir e perceber, apenas, que a sua escolha – geradora de muita instabilidade e mal recebida pela opinião pública – afecta o Governo e, desta forma, o país. Não se trata de admitir crime algum, apenas de pensar no país e em quem o elegeu. Excluindo alguns fãs mais incondicionais, parece-me consensual que uma maioria que votou em Montenegro não gostou de saber que continuou a receber – ele, a mulher ou os filhos – avenças antigas. Se esta maioria considera tal facto suficientemente grave para conduzir o país a eleições, essa já será outra discussão. Mas acredito que uma maioria não gostou e defende o afastamento do chefe do Governo.

Como sabemos, não foi isso que fez. Respostas tortas, muita arrogância, moções e entrevistas. Foi esta a opção: Jogar. A AD acredita que vence novamente as eleições e provavelmente com maioria absoluta. Não só não protege o Estado de um caso que contribui para a degradação da confiança, como ainda faz uso dele para provocar eleições. Não consigo concordar com esta estratégia, que até considero, como já referi em reflexão anterior, geradora de revolta popular. O país está parado e há quem pague a paragem. Há quem sofra financeiramente – mas não só – com estas brincadeiras de jotas.

Ao longo desta história, não me lembro de uma ocasião em que Luís Montenegro tenha estado bem. Já tinha passado a empresa para os seus familiares, dizia que não tinha nada a ver com aquilo, mas depois reuniu em São Bento não um Conselho de Ministros, mas uma assembleia-geral da Spinumviva, rematando o dia com um reclame às 20 horas. Ou seja, a empresa não é sua, mas é. O PSD, que ainda nem reuniu os seus órgãos, também parece ser seu. Assim como a AD, porque o CDS fará o que lhe disserem para fazer, nomeadamente deitar-se ou rebolar.

Luís Montenegro é então o Dono Daquilo Tudo.

Por mais voltas que dê, não concordo com a escolha que fez e por dois ângulos distintos. O primeiro, da probidade. Devemos querer mais para o Estado e para os titulares de cargos públicos. O segundo, da eficácia. É uma jogada arriscada que, se falhar, atira o centro-direita novamente para as alminhas, um ano depois de ter regressado ao poder; com muita sorte, sem qualquer mérito, deve tudo ao Ministério Público. É do campo da anedota. Depois não se podem queixar, como tantas vezes fazem, de que o PS governou 50 anos nos últimos 20. A culpa é mesmo de quem se queixa. Exclusivamente deles.

Aliás, é preciso lembrar que, nos últimos anos, cresceram todos à volta de PSD e CDS. O PS teve uma folgada maioria absoluta, que ainda podia estar em funções a esta hora. O Chega alcançou 50 deputados. Mas, mesmo assim, nunca pararam para pensar. Tornam-se apenas arrogantes e vão para a televisão revirar os olhos. Com todo o respeito, acho que não vai correr bem.

Mas há uma hipótese, sim, e com isto avançamos para a oposição, mais concretamente para o Partido Socialista. Pedro Nuno Santos teve um bom discurso no debate da moção de censura apresentada pelo PCP, mas é um líder fraco e inseguro. Pode ser a salvação de Luís Montenegro. Pedro Nuno Santos arrisca-se a cair no engodo e ficar como responsável desta crise, o que devia conceder-lhe um prémio, um prémio qualquer, até podia ser uma estrela Michelin no Largo do Rato. Lembrou-se de dizer, um dia, para não apresentarem uma moção de confiança, porque a chumbaria. Ela aí está. Disse ontem, em entrevista, que agora tem de chumbar a moção de confiança por uma questão de coerência. Ou seja, a contrario, poderá ler-se que, se não fosse por uma questão de coerência (declarações anteriores), a viabilizaria. Que estratégia é esta? Aliás, que coerência é esta?

Não quer eleições, mas vai chumbar a moção de confiança. Ao contrário do que Pedro Nuno Santos e Alexandra Leitão têm dito, viabilizar uma moção de confiança não é aprovar tudo o que o Governo faz. O país sabe muito bem o que é que se discute nesta moção de confiança. Todo o país sabe o que está em causa. É mandar ou não o Governo para casa, na sequência do escândalo com as avenças do primeiro-ministro. É isto que está em causa. Não se brinque com as palavras, evite-se a hipocrisia. É isto que está em cima da mesa. Não é nada aprovar tudo o que o Governo anda a fazer. Muito mais seria isso quando o PS viabilizou o Programa de Governo, permitindo que ele entrasse em funções.

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