Há já algum tempo que as pessoas não se ofendiam com alguma coisa, a tal ponto que eu comecei a pensar se a Humanidade não estaria já extinta, o que seria uma pena logo agora que o governo está quase a resolver os problemas da habitação. Felizmente, apareceram 37 notáveis a marrar com uma estátua. Parecem poucos, mas um que se nota vale por mil que ninguém dá conta, pelo que falamos de uma espécie de petição assinada por 37 mil pessoas. São poucos notáveis, mas é muita gente.
Em causa uma estátua de Camilo Castelo Branco com Ana Plácido (ou não), no Largo Amor de Perdição, no Porto. O autor da obra diz que não é Ana Plácido e a verdade é que não se parece com ela, mas caramba, essa leitura é praticamente obrigatória. Outra amante e não é Camilo, é camelo.
Vamos assumir. Camilo ouviu a mãe e levou agasalho, Ana Plácido não. Está nua. Vê-se um rabo e há quem tenha visto nisso “pornografia”. Outros “desgosto estético” – que, pela mesma bitola, devem encontrar na própria história. O problema podia então ser resolvido se Camilo emprestasse o seu casaco à Ana, mas nesse caso ficava o rabo de Camilo à mostra, o que me levaria, também a mim, a assinar a petição. Se é para ver homens nus, dispenso autores portugueses, penso que os deuses gregos estão bem.
Goste-se ou não – a arte é sempre subjectiva – a estátua acaba por representar bem aquele romance, que não podia deixar de ter alguma pimenta. Aliás, um “Amor de Perdição” devia fazer soar os alarmes nas bibliotecas dos notáveis. Imagine-se alguém representar um amor de perdição em estátua com um casalinho de anoraque e os sacos das compras pelas mãos. Ou numa paragem, à espera do autocarro. Imagine-se um amor proibido, que deu cadeia, ilustrado com ambos a preencher o IRS no último dia do prazo. Isto é que seria um desgosto.
Quando surgiu a crise, atribuímo-la imediata e injustamente ao wokismo, pensando “que culpa temos nós de Ana Plácido não ter escutado a mãe, que disse que estava frio”. Ou será que o problema era Ana ser Plácido e não Flácida, porque isso ofende quem descaiu um pouco? Havia desculpa. O bronze é mais fácil de manter no sítio. Mas desta vez não foram eles. Quem diria, conservadores e progressistas na mesma luta.
Certo é que a queixa veio dos notáveis, que viram mais que um rabo. Para mim, Ana Plácido, acabada de sair do banho, está a perguntar ao Camilo pelo robe. Foi azar a estátua ter sido feita naquele momento. Só que os notáveis são pessoas que se vestem imenso. Lobo Xavier, que está entre estes 37, deve vestir o fato e pôr o lenço para ir à casa de banho a meio da noite. Ilda Figueiredo, a vereadora da CDU que também assina, vê ali desigualdade, perdendo a oportunidade de lembrar tempos em que não havia agasalhos para todos. Já o banqueiro Artur Santos Silva, ainda que afastado das lides, não se devia ter metido nisto, pois Ana Plácido pode bem ter ficado sem roupa por não ter conseguido pagar um crédito.
Entretanto, Rui Moreira foi na conversa e concorda que o monumento deve ser enviado para um barracão da câmara. O autarca preferia ter para ali enviado Sérgio Conceição, mas pronto, vão estes dois, que pelos vistos também o incomodam.