Antes de começarmos, vou pedir para desligarem os micros. Isso. Rui, ainda não desligaste. Isso é a câmara, Rui. Pronto. Está tudo? Joana… tens de desligar o micro. Pedro, tens de ligar a câmara. Vanessa, se não se pode vir de pijama, muito menos se pode aparecer apenas com uma gota de perfume…
Vamos então começar a crónica. Está tudo? Parece que sim. Vamos lá. Ora bem, já se começa a falar em desconfinamento, mas muito baixinho pois não há ainda evidência científica de que o novo coronavírus não tenha ouvidos. Por isso devemos sussurrar tudo o que esteja relacionado com desconfinamento. Isso. Shiu. Mais baixo.
Mas não tão baixo porque temos de falar a dois metros de distância. O melhor é chamarmos-lhe outra coisa. Anifnoc, por exemplo, que é confina ao contrário. Uma vez que já é uma evidência científica que o novo coronavírus é estúpido – de outro modo não liquidava quem lhe dá boleia – dificilmente perceberá do que estamos a falar.
Ainda se sabe muito pouco sobre como será o anifnoc, mas é certo que começará pelas escolas e isso é mesmo uma notícia magnífica. Para todos, mas particularmente para as crianças, que reencontram os seus amigos, os seus professores, recuperam as suas aulas, e mais importante que tudo: são libertados da jaula em que foram fechados com aqueles mamíferos bipolares, que não conseguem fazer uma coisa ao mesmo tempo, quanto mais duas.
Outro bom argumento para começar o anifnoc pela reabertura das escolas é que o ensino à distância não é ensino. É outra coisa qualquer. Tortura, por exemplo. Há já muitos relatos de crianças que começaram a contar a verdade durante uma aula. – Sim, fui eu que comi o chocolate todo, não foi o meu cão – confessou um jovem, do nada, durante uma aula. Porém, a confissão não terá qualquer utilidade em julgamento, na medida em que foi obtida através de tortura.
Há coisas que, apesar de tecnicamente ser possível fazer online, na prática não podem. A revisão ao carro por Zoom, por exemplo. Também seria possível estar online com o mecânico que nos ia dizendo como mudar o óleo e substituir a correia. Outro exemplo, arranjar um dente. Bastava mandar vir os utensílios, encomendar uma cadeira de dentista e “ingressar” numa reunião com o especialista. – Agora é puxar, força, isso… pronto, já saiu. Espere! A câmara faz espelho, era o dente do outro lado!
Ora, as aulas, tal como estas actividades, tecnicamente podem ser online mas na prática não podem. Isto contrapõe com actividades que não são de todo realizáveis online, como entrar em campo pela nossa equipa.
No contexto online, nem sequer se deviam chamar aulas. São mais ‘aulgazarras’, das quais se consegue adquirir amiúde um ou outro conhecimento, mas o mais certo é perder-se faculdades ao fim de um período inteiro online. – Olha, o Joaquim já falava pelo menos uma língua e agora nada, voltou a palrar.
Como se pode imaginar, o grande inimigo do ensino à distância é a distância. A professora não sabe quem pediu para falar. A Matilde caiu. Agora ouve-se o pai do José em fundo, que já perguntou duas vezes se alguém quer alho, deve ser chef. A professora continua a olhar para o ecrã como se estivesse a jogar ao “Quem é Quem?”. O Manuel quer ir à casa de banho, a Matilde voltou. – Matilde? – Sim, profes – mas voltou a cair. – Stôra – chama o Luís enquanto a Mariana põe uma dúvida. – Stôra – insiste o Luís porque aprendeu que só se deixa de chamar uma pessoa quando ela responde. – Stôra, stôra, stôra – Sim, Luís? – acaba por consentir a professora, sem saber onde raio está o Luís naquele baralho de alunos. – Tenho de desligar porque a minha mãe tem agora uma reunião – explica o Luís, mas entretanto a Matilde volta a entrar. – Está bem, podes sair Matilde – responde a professora, que se confundiu, mandando outra vez a Matilde ao ar, logo agora que se tinha conseguido ligar. – Stôra – chama o Luís novamente.
Enfim, se o ensino presidencial já é difícil, sendo muitas vezes caótico, aquilo que se consegue com o ensino à distância é juntar-lhe um pequeno delay. Não pode ser solução. Assim o estupor do bicho permita o anifnoc.